*Andréia Espíndola, Ângela Daltóe Tregnago e Maris Tonon
Em 19 de outubro de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou o chamado “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, um documento com 132 páginas que sinalizou às mulheres que o sistema de justiça brasileiro estaria sendo repensado para oferecer respostas mais justas e reparadoras para suas demandas, nos mais diferentes ramos da Justiça: Federal, Estadual, do Trabalho, Eleitoral e Militar. Em audiência pública extraordinária, realizada em 16 de dezembro daquele ano, pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, a deputada federal catarinense Carmen Zanotto concluiu que esse instrumento foi dirigido ao Poder Judiciário, mas pode ser reproduzido em todas as esferas do Poder Executivo, federal, estadual e municipal, no parlamento, na segurança pública, na área da saúde e nos demais âmbitos dos serviços públicos.
Em setembro de 2022, quase um ano depois da publicação instruindo sobre o uso do protocolo pelo CNJ, em plenária realizada no 4º Encontro de Mulheres do Sinjusc no município de Brusque/SC, deliberou-se pela formação de uma Comissão de Mulheres integrantes do Coletivo Feminista Valente para confecção e entrega de ofícios às instituições que compõem o Sistema de Justiça. A entrega dos ofícios ao Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), à Defensoria Pública e ao próprio Tribunal de Justiça do estado (TJSC) tinha como objetivo reforçar a necessidade, identificada pelas Valentes participantes do evento, de que o protocolo, que ainda não vinha sendo aplicado efetivamente, devesse ser discutido; solicitaram, assim, que fossem viabilizadas formações aos membros desses órgãos, bem como que o MPSC observasse com maior atenção a Lei nº 13.894/2019.
Após a elaboração dos ofícios e a articulação com as instituições destinatárias, foram agendadas as entregas dos documentos para o dia 1º de fevereiro de 2023. Na referida data, a comissão formada por mulheres membros do Coletivo Valente visitou a Corregedoria do Ministério Público e também a Defensoria Pública de Santa Catarina, sendo recebidas, respectivamente, pela procuradora do Ministério Público e corregedora-geral em exercício, Doutora Cristiane Rosália Maestri Böell, e pela Doutora Anne Teive Auras, defensora pública e coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa das Mulheres (Nudem).
Na oportunidade da visita, a coordenadora do Nudem e defensora pública Anne destacou que: “O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero tem sido utilizado como referência para teses desenvolvidas pelo Nudem e replicadas pelas defensoras e pelos defensores públicos de Santa Catarina na defesa dos direitos das mulheres e das meninas catarinenses.” Registrou, ainda, que durante o ano de 2022 o Nudem facilitou oficinas virtuais sobre Direito das Famílias, fundamentado na Perspectiva de Gênero. Posteriormente, em março de 2023, por ocasião do “III Congresso Gênero, Família e Direitos Fundamentais – Violência Doméstica e Familiar: Violação de Direitos Humanos,” em painel denominado “Direito de Família com perspectiva de Gênero – contribuições do novo Protocolo do CNJ”, a defensora Anne Auras lembrou da “visita ilustre” que recebeu de representantes do Coletivo Feminista Valente, com a demanda de apoio para que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero fosse realmente efetivado.
As visitas, os diálogos e as entregas dos ofícios pelas integrantes do Coletivo Valente também tiveram desdobramentos positivos junto ao MPSC. Ainda em 15 de fevereiro de 2023, a então Corregedora-Geral em exercício, Doutora Cristiane Böell, emitiu um despacho determinando a remessa da missiva entregue para o Neavid (Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher) e ao Ceaf (Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional), para que se analise a viabilidade da inclusão da temática no Curso de Ingresso e Vitaliciamento na Carreira do Ministério Público, destinado aos promotores de Justiça em estágio probatório e em outros cursos e seminários de aperfeiçoamento profissional de membros e de servidores da instituição.
Apesar desses movimentos, quem costuma acompanhar os meios de comunicação do MPSC observa que essa importante instituição do Sistema de Justiça tem ficado silente, pouco tendo ainda comentado sobre o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, embora se saiba que é com base nos pareceres de promotores e de promotoras de Justiça que ocorrem muitas decisões judiciais nas áreas criminal, de família e da infância e juventude. Esse silêncio é muito preocupante para as mulheres que estão com demandas judiciais nas comarcas, onde encontram profissionais sem perspectiva de gênero, desalinhados com as diretrizes do Protocolo e, consequentemente, com muitas dificuldades para acessarem direitos.
Ao trabalhar cotidianamente no poder judiciário catarinense e enquanto integrantes do Coletivo Valente, não se pode deixar de observar que as mães vítimas de violência doméstica e patrimonial acabam mobilizando seus recursos para pagarem advogados e custas judiciais em detrimento de poderem investir no desenvolvimento e no bem-estar da prole, ao passo em que promotores e promotoras de Justiça declinam de se manifestarem nos autos, asseverando que essas demandas não despertam interesse por parte do Órgão Ministerial. Chegam a pontuar que não existem interesses de incapazes envolvidos e que a orientação é pela ‘racionalização’ da intervenção do Ministério Público, ao mesmo tempo em que em suas redes de comunicação a instituição promete não deixar os segmentos vulnerabilizados sem amparo.
Quanto ao âmbito do TJSC, acredita-se que em decorrência do pioneirismo da equipe que compõe a Cevid (Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar), o debate a respeito do protocolo foi aberto ainda no início de 2022. Em março daquele ano, a instituição realizou uma live referente ao tema e emitiu uma circular (nº 56) para instruir os magistrados a observarem o referido protocolo em suas decisões. Contudo, um primeiro curso presencial oferecido pelo judiciário catarinense ocorreu apenas em março de 2023.
Enquanto isso, os desafios para que decisões com base no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero comecem a chegar até as mulheres nas diferentes varas de cada comarca são muito grandes, considerando-se o perfil da magistratura brasileira, assim como o estadual. Isto é, a forte cultura patriarcal presente nessas instituições, na sociedade em geral, nas famílias e nos indivíduos. Além disso, a questão é também amplificada pelas conhecidas cobranças por celeridade e produtividade, mesmo em áreas sensíveis como crime, família, infância e juventude, contribuindo para que diversas situações não recebam a atenção adequada ou ideal.
Causa alívio ouvir notícias de magistrados catarinenses tendo humildade e reconhecendo que precisam desconstruir o machismo que também está presente neles. Contudo, depoimentos dessa natureza ainda são raros. De outra banda, angustia o silêncio observado a respeito do tema por parte do Ministério Público Catarinense, em suas redes sociais, ou mesmo da Associação Catarinense de Magistrados.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero traz esperanças para as mulheres, de que depoimentos como esse – registrado em artigo denominado “Entre o Sofrimento e a Esperança: O atendimento à Mulher no Sistema de Justiça”, publicado no Portal Catarinas em 9 de dezembro de 2019, de autoria da promotora de Justiça Helen Crystine Corrêa Sanches – fiquem definitivamente no passado:
Venho a esta vara, reiterar minha desistência do prosseguimento das investigações, não porque não desejo mais que a justiça seja feita, pelo contrário, mas porque não me encontro mais capaz de mente, corpo e condição econômica, de continuar sacrificando a mim mesma para fazer funcionar um sistema desenhado por homens, para homens. Não desejo permanecer sendo revitimizada por uma instituição tão abissalmente desconexa da realidade das pessoas que deveria proteger. (depoimento de mulher vítima de violência doméstica e familiar anexado aos autos do processo criminal por ocasião da audiência realizada em novembro de 2019).
Há alguns meses, em 17 de março de 2023, o CNJ editou a Resolução nº 492 e nela estabeleceu como obrigatória a adoção da Perspectiva de Gênero nos julgamentos de todo o Poder Judiciário. Além desse importante avanço para que o uso do protocolo deixe de ser uma “recomendação” (como ocorria desde 2021) e torne-se uma “obrigação”, a resolução também instituiu a obrigatoriedade de capacitação para magistrados e magistradas relacionada aos direitos humanos, a gênero, à raça e à etnia, em perspectiva interseccional e, ainda, criou o Comitê de Acompanhamento e a Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Feminina do Poder Judiciário.
As mulheres do Coletivo Feminista Valente possuem consciência de que a Lei Maria da Penha (2006), o Protocolo com Orientações para a Escuta Humanizada e não Revitimizadora da Mulher em Situação de Violência de SC (Agosto/2021) e, também, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (Outubro/2021) são frutos das dores, do sofrimento e principalmente da coragem de mulheres potentes; não foram uma concessão, “nasceram à força”, como fruto de muita luta e de movimentos que precisarão ter continuidade e força para que realmente possam sempre ser observados, concretamente considerados ou cumpridos. Nessa perspectiva, o Coletivo Valente continua(rá), dentro de suas possibilidades e limites, realizando diálogos de sensibilização com os órgãos vinculados ao Sistema de Justiça, pleiteando por formações, capacitações, solicitando maior divulgação do referido documento por meio de cartilhas e de vídeos. Inclusive, conforme já discutido em reunião do Coletivo, realizada em maio de 2023, para planejamento das ações alinhadas às diretrizes da atuação do coletivo, para os próximos anos, propõe-se a criação de um fórum permanente de debates acerca do protocolo em questão.
*Spindola é assistente social do TJSC desde 2001 e integrante do Coletivo Valente.
*Tregnago é assistente social do TJSC desde 2016, Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Federal da Fronteira Sul, dirigente sindical do Sinjusc e integrante do Coletivo Valente.
*Tonon é assistente social, sindicalizada, trabalhadora pública aposentada e integrante do Coletivo Valente e da Gestão do Núcleo de Aposentados (NAP)
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Esse artigo foi originalmente e de forma exclusiva produzida para a 8ª edição da Revista Valente. Para ler o artigo na revista ou ouvir o áudio texto, CLIQUE AQUI.