O uso da inteligência artificial no mundo jurídico

Por Angelo Gamba Prata de Carvalho, graduando em Direito pela Universidade de Brasília

Da ficção científica ao mundo real, a inteligência artificial levanta suspeitas e expectativas desde suas primeiras formulações. Ao indagar se as máquinas poderiam pensar, Alan Turing[1] já antevia os desdobramentos da inteligência artificial enquanto ferramenta capaz de emular o intelecto humano e mesmo de superá-lo em capacidade de aprendizagem e de raciocínio. Na ficção, considerando o potencial da inteligência artificial de suplantar o potencial da mente humana em sentido mais drástico, Isaac Asimov[2] refletiu sobre a necessidade de limitar o âmbito de ação das máquinas por leis introduzidas em seus códigos, destinadas a preservar tanto a eficiência das máquinas quanto a vida humana.

A inteligência artificial – no sentido mais realista da expressão – tem se mostrado importante ferramenta para o direito por possibilitar a realização de conexões e correlações dificilmente factíveis por mentes humanas, descobrindo padrões que podem em muito contribuir para o aprimoramento das práticas jurídicas e judiciárias. Ocorre que, mesmo que não se cogite – ainda – da implementação de leis como as de Asimov, o poder de “cognição” da inteligência artificial, especialmente no que tange à sua aplicação no direito, já encontra barreiras na dificuldade de construção de um acervo satisfatório de dados para análise.

Antes de tratar de alguns exemplos concretos em que se pode observar as facilidades trazidas ao direito pela inteligência artificial, é importante esclarecer alguns pontos do vocabulário muitas vezes empregado para lidar com o tema, tendo em vista a necessidade de compreender o real potencial dessas ferramentas. A construção de sistemas orientados por inteligência artificial consiste, basicamente, na estruturação de algoritmos capazes de tomar a melhor decisão possível em uma dada situação a partir da observação dos dados disponíveis no ambiente, seja a partir da progressiva coleta desses dados, seja a partir da análise de bases de dados previamente fornecidas ao sistema em sua programação[3].

Assim, por intermédio de análises estatísticas construídas a partir dos dados disponíveis, sistemas operando com inteligência artificial são capazes de realizar inferências e previsões mais ou menos precisas, com vistas a subsidiar a tomada de decisões pelo próprio sistema ou mesmo a possibilitar a realização de correlações não visualizáveis a priori por agentes humanos. Nesse sentido, pode-se mencionar o exemplo do high frequency trading, ferramenta empregada nos mercados financeiros para, a partir da percepção quase instantânea de oscilações nas cotações de valores mobiliários, realizar operações de compra ou venda para alcançar retorno financeiro mais eficiente[4]. Aqui, é importante notar que tais operações podem apresentar alguma preocupação para a regulação jurídica, tendo em vista seu potencial impacto sobre mercados[5]. Por esse motivo, a Comissão de Valores Mobiliários criou, por meio da Portaria nº 105/2016, núcleo de estudos destinado a acompanhar inovações como essa e garantir segurança ao sistema financeiro.

Juntamente do conceito de inteligência artificial, é necessário também compreender a natureza de outra ferramenta importante: o “aprendizado de máquina” ou machine learning. O machine learning consiste na capacidade de os sistemas se adaptarem a novas circunstâncias e extrapolar padrões previamente estabelecidos, “aprendendo” com os dados já conhecidos e disso produzindo novas informações aptas a subsidiarem tomadas de decisão futuras[6]. O machine learning diz respeito, portanto, à possibilidade de a análise estatística dos dados levar a soluções sequer cogitadas por seus programadores no desenvolvimento do software, aprimorando as decisões do sistema a partir de erros e acertos da própria máquina. Por esse motivo, tendo em conta as demandas sociais – e mesmo do mundo jurídico – por soluções que facilitem a solução ótima de problemas, o machine learning constitui peça fundamental dos sistemas de inteligência artificial.

É necessário que fique claro, contudo, que a eficiência das respostas de sistemas como os aqui descritos somente pode ser plenamente alcançada se tais estruturas forem capazes de recolher dados idôneos e suficientes para a construção de padrão estatístico confiável. A dificuldade de obtenção desses acervos se verifica, especialmente no Brasil, na escassez de conjuntos de dados públicos disponíveis para análise. Embora existam iniciativas nesse sentido a partir do poder público[7], a obtenção de dados do Poder Judiciário é – ainda que factível – de grande dificuldade, tendo em vista as interfaces pouco amigáveis e não padronizadas das diversas bases de dados de tribunais brasileiros.

A manipulação de dados públicos sobre decisões judiciais permite, por exemplo, a realização de projetos como o Supreme Court Forecasting Project[8], implementado por pesquisadores norte-americanos em 2004 para, a partir da análise em massa de casos julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos, prever resultados de casos futuros antes mesmo dos debates orais. Simultaneamente, as mesmas “perguntas” submetidas ao sistema foram realizadas a profissionais do direito atuantes na Suprema Corte. O modelo estatístico estruturado pelos pesquisadores previu corretamente 75% das decisões do Tribunal, ao passo que operadores do direito acertaram 59,1% dos resultados.

Para além da observação do Judiciário, a inteligência artificial pode ser empregada para contribuir na detecção de irregularidades em compras públicas e, portanto, na eficiência da Administração. É o caso da proposta de Célia Ralha (UnB) e Carlos Silva (CGU)[9], que em artigo de 2012 apresentaram um modelo de software baseado em inteligência artificial que, a partir da análise do conjunto de dados de compras públicas do portal ComprasNet, do governo federal, permite identificar a cartelização em processos licitatórios com confiabilidade média de 90%. A inteligência artificial, portanto, pode constituir ferramenta poderosa para alcançar diversos fins caros ao direito.

Contudo, parafraseando Deckard, o caçador de androides de Blade Runner, máquinas representam benefícios ou riscos – caso trouxessem apenas benefícios, sequer seriam necessários caçadores de androides. O uso de dados pessoais, verdadeiros “combustíveis” dos argumentos aqui descritos, traz uma série de dilemas referentes à ponderação entre a utilidade de serviços tecnológicos e os riscos à privacidade dos indivíduos daí decorrente. Na próxima coluna, trataremos dessas questões.

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[1] TURING, Alan. Computing machinery and intelligence. Mind. n. 49, pp. 433-460, 1950.
[2] ASIMOV, Isaac. Eu, robô. São Paulo: Aleph, 2014.
[3] Ver: RUSSELL, Stuart J.; NORVIG, Peter. Artificial intelligence: a modern approach. 3.ed. Upper Saddle River: Pearson, 2010. p. 43.
[4] Nesse sentido: GOMBER, Peter et al. High frequency trading. Policy platform white paper. Frankfurt: House of Finance. 2011.
[5] A repercussão do high frequency trading sobre a estabilidade dos mercados é verificável a partir do fenômeno flash crash, isto é, de graves oscilações em mercados que possam decorrer de problemas nos algoritmos responsáveis por tais operações. Ver: THE ECONOMIST. Why sterling suffered a “flash crash”: The pound’s weakness is a vote of no confidence in Brexiting Britain. Disponível em: < http://www.economist.com/news/finance-and-economics/21708673-pounds-weakness-vote-no-confidence-brexiting-britain-why-sterling> Acesso em: 10 jun. 2017.
[6] RUSSELL; NORVIG; Op. cit., p. 2.
[7] BRASIL. Portal brasileiro de dados abertos. Disponível em: <http://dados.gov.br/> Acesso em: 10 jun. 2017.
[8] RUGER, Theodor W. et al. The Supreme Court forecasting Project: legal and political Science approaches to predicting Supreme Court decisionmaking. Columbia Law Review. v. 104, pp. 1150-1210, 2004.
[9] RALHA, Célia Ghedini; SILVA, Carlos Vinícius Sarmento. A multi-agent data mining system for cartel detection in Brazilian government procurement. Expert systems with applications. v. 39, pp. 11642-11656, 2012.
[10] BLADE Runner, o caçador de androides. Direção: Ridley Scott. Produção: Michael Deeley. Intérpretes: Harrison Ford; Rutger Hauer; Sean Young; Edward Ward; James Olmos e outros. Roteiro: Hampton Fancher e David Peoples. Música: Vangelis. Los Angeles: Warner Brothers, 1991. 1 DVD (117 min), Color. Produzido por Warner Video Home.

 

O texto está originalmente publicado site Jota 

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