Por Alana Pastorini*
A entrevista da 6ª edição da Revista Valente, que foi produzida no segundo ano de pandemia do coronavírus, vem com potência da voz da mulher negra: Alaíde Honorato da Silva. Servidora pública da prefeitura de Araquari, fonoaudióloga, membra dos Coletivos Frente Negra, Nova Frente Negra de Santa Catarina, Movimento Negro PDT e do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Araquari (COMDIM). Alaíde ainda compõe a Diretoria Executiva
do Sindicato dos servidores Públicos do Município (Sintraspar) e Conselho Fiscal da Rede Feminina de Combate ao Câncer Araquari (RFCC). A partir das suas narrativas, Alaíde leva o leitor (ou deve- ria) – maioria branca -, a lugares de contornos sobre os privilégios da branquitute. Deveria porque os brancos, incluindo esta jornalista que escreve, não precisam lidar com questões raciais desde pequenos, isso porque não se enxergam como raça, isso é para os
outros. Para eles (eu, tu nós brancos), branco é padrão, universal!
Segundo o Atlas da Violência divulgado em 2019, houve um aumento de 30,7% no número de mulheres assassinadas de 2007 a 2017, ano em que foram mortas 4.936 mulheres (a maior quantidade desde 2007), ou seja, cerca de catorze por dia. As mulheres negras foram as mais atingidas, representando 66% de todas essas vítimas. No mesmo período, o feminicídio de negras teve um crescimento de 30% (5,6 para cada grupo de 100 mil mulheres), ao passo que o de não negras cresceu 1,6% (3,2 para cada grupo de 100 mil).
O aumento superior de violência contra mulheres negras evidencia a inabilidade do Estado de desenvolver políticas públicas específicas para população negra?
Sim, com certeza. No Brasil, cada Estado tem a sua forma de coletar dados, mas em todos os estados as mulheres negras estão no topo da pirâmide da violência e do feminicídio. O Estado precisa pensar em políticas públicas específicas para as mulheres negras, para que possam ter acesso à denúncia e que suas denúncias sejam acolhidas, pois sabe-se, pela forma como são tratadas nas delegacias, que o racismo impede que essas mulheres façam o Boletim de Ocorrência. Para elas, a violência é normatizada, e sofrem violência novamente quando tentam fazer o Boletim de Ocorrência.
Para você, enquanto servidora municipal da saúde, como os ataques ao serviço público, arquitetados em todas as esferas (federal, estadual e municipal), impactam o seu trabalho?
Percebe-se que as pessoas estão replicando as atitudes, que acontecem no ente federal, quase como um efeito dominó. Estamos perdendo direitos enquanto servidores, não há um planejamento para executar um serviço pensando a curto médio e longo prazo e principalmente nas consequências. São muitas ações impensadas que recaem sobre os serviços que atuam na ponta e automaticamente sobre os mais vulneráveis, porque são estes que precisam e dependem dos serviços oferecidos no SUS.
E além, como a falta de políticas públicas e a consequente diminuição de repasse à saúde e à educação impactam a luta contra a violência doméstica?
A maioria dos municípios não tem plano municipal de políticas públicas para as mulheres ou para qualquer outro segmento, dessa forma, a dificuldade para fazer ações que coíbam esta violência torna-se mais difícil, pois sem recurso financeiro previsto não há como fazer um trabalho efetivo, já que para se fazer um trabalho efetivo, é necessário fazer um diagnóstico para saber quem são essas mulheres, onde estão e quais suas principais demandas.
Verifiquei pelo site da Câmara Municipal de Araquari que não há mulheres negras no legislativo. Já teve?
Não, já tivemos outras mulheres negras candidatas, mas nenhuma ainda conseguiu se eleger. Apesar de Araquari ter uma população majoritariamente negra, ainda não conseguimos despertar essa consciência de votar nos nossos. É a única forma de deixar mais leve o caminho para quem vem depois, e principalmente mostra que é possível.
Como atrair mais mulheres à política?
Os partidos precisam investir em projetos que agreguem as mulheres, campanhas específicas para filiação delas. Aumentando o quadro de filiadas, tem-se um score maior para escolha na época da eleição. Considerando que a maioria das legendas tem segmentos específicos e a participação da mulher se dá transversalmente. A educação seria o ponto principal para alcançar os jovens que estão iniciando, ou seja, tendo seu primeiro contato com a política. Por meio da educação, é possível trabalhar a conscientização na base, preparando esses jovens para ocupar tais espaços. Os partidos que adotam essa política têm jovens mulheres e homens preparados, porém de nada adianta fazer um trabalho de base e as mulheres continuarem segurando bandeira ou no trabalho burocrático.
Indispensável lembrar da catarinense Antonieta de Barros, primeira mulher negra eleita deputada no país, em 1934. Mas, infelizmente, depois dela, nenhuma mulher negra foi eleita deputada estadual aqui em Santa Catarina.
Por que isso não indigna?
Vale ressaltar que em 1934 foi o ano que deu direito à população preta e pobre ao voto. Com certeza indigna, porém precisamos compreender que o sistema racista e a história da escravização do Brasil nos colocam nesse lugar com diversos discursos, como, por exemplo, “que preto não vota em preto”. Assim, internalizamos essa e outras frases que foram usadas para desarticular o povo preto, levando-nos para o lugar que queriam. Hoje, não achamos possível eleger uma mulher negra, no município ou no estado. Para além da indignação, é preciso ação, precisamos nos articular, desconstruir alguns conceitos que foram incutidos em nossas mentes, e seguimos repetindo: “A mentira quando repetida muitas vezes vira verdade”. Acredito que ainda não achamos a palavra para além da indignação que nos faça valorizar nosso voto de preto para preto.
Em um atraso social histórico, avança o conservadorismo em que os debates sobre gênero, raça, etnia e sexualidade são demonizados. Posto isso, a educação, na qual você também tem experiência, se faz necessária, mas também enfrenta resistência dos grupos dominantes.
No livro: “Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça”, a jornalista Reni Eddo-Lodge fala exatamente da exaustão de explicar/ponderar sobre racismo aos brancos, que são os progenitores do sistema racista altamente eficiente ao privilégio e que não estão dispostos a abandonar o posto. O livro pondera que a jornalista se recusa a falar com quem não quer ouvir nem quer ver os estragos do racismo na vida das pessoas não brancas. Reni Eddo-Lodge propõe opor à negação do racismo uma recusa da sua banalização e normalização. O livro é um esforço para, com dados e fatos, argumentar a favor da legitimidade dessa recusa ética em prolongar o cinismo político e social de desviar do foco as vítimas do racismo.
O branco tem uma posição privilegiada, de achar que as pessoas negras estão sempre disponíveis para ajudar as brancas. Aprendemos a ser racistas e é nossa obrigação como brancos racistas desaprendermos. Te cansa ser procurada por brancos pra falar sobre isso?
Não sei se “cansar” seria a palavra, como dizem os meus mais novos, “Dá preguiça de falar sobre”. Porque todas as pessoas deveriam ter este compromisso de aprender sobre a história do outro. Isso não deve ser um assunto que só a Alaíde saiba falar. Compreendemos todo o processo histórico, mas cabe a eles buscar conhecimento para fortalecer a luta antirracista. Só fazem esse movimento as pessoas que têm um olhar para a desigualdade que temos no Brasil, quem entende o seu lugar de privilégio e não se sente confortável com isso.
Você sente isso, que nós brancos achamos que as pessoas negras devem estar sempre disponíveis para nos reeducar, que estamos terceirizando a responsabilidade sobre a luta antirracista? O quanto isso te afeta, te sobrecarrega?
Sim, virou nossa obrigação falar sobre, ensinar sobre. Me afeta na medida em que falo para um grupo e não percebo mudança de comportamento ou julgamento quando esse mesmo grupo vê um preto se aproximando, por exemplo. Porque eu acredito na educação como instrumento de mudança, se não há mudança, não vejo razão para continuar falando ou reeducando.
Você entende que o branco, antes de debater racismo, precisa debater branquitude?
Transformar a relação de dominação que caracteriza a branquitude exige que esses a reconheçam, desaprendam e desconstruam a ideologia que os autoriza a colocar a população negra em posições subalternas. Isso é imprescindível para redefinir o lugar da branquitude e enfrentar o racismo institucional e estrutural.
*Pós-graduada em comunicação digital e docência profissional tecnológica, jornalista, coordenadora de comunicação do SINJUSC e estudante de gestão da comunicação digital.
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Essa entrevista foi originalmente e de forma exclusiva produzida para a 6ª edição da Revista Valente. Para ler o artigo na revista ou ouvir o áudio texto, CLIQUE AQUI.