Dívida privada

Quando alguém quer passar a pior imagem de um País em termos de economia, a primeira ideia que sai da cabeça, principalmente dos defensores da globalização e do liberalismo econômico, é a questão da dívida pública. Estes defensores enchem os pulmões para dizer que o Estado está inchado e que há programas sociais demais. Mas de propósito esquecem de tratar da dívida do setor privado, que chegou a quase 95% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil no final de 2015.

Sem tocar no fundo da dívida privada, os gritalhões que são a favor do Estado mínimo e de uma figura esquisita, que, dizem, se autorregula, chamada ‘mercado’, sabem que a dívida privada sempre provocou transtornos para o Estado e para as pessoas que nada têm a ver com esses negócios privados, como eu e você.

Entre 2005 e 2015, no Brasil, Rússia, África do Sul, Índia, Turquia, Indonésia e México, a dívida privada passou de 46% para 77% do PIB. Na hora em que a dívida aumenta, aquela figura esquisita chamada ‘mercado’ convoca o Estado e joga a conta nas costas de quem? Dos trabalhadores, é claro. A dívida privada se transforma em passivos para a dívida dos países, e o governo se torna o garantidor de que ela será quitada. Ao rolar a dívida privada com o aval do governo, ficam comprometidos o orçamento nacional e o caixa das companhias estatais.

A dívida pública não é somente um problema para os países citados acima. Afeta boa parte dos países mais ricos. A dívida privada dos EUA, por exemplo, duplicou em 12 anos e é quatro vezes maior do que a pública. Na Europa, as dívidas de famílias e as dívidas de empresas ultrapassam o dobro do PIB. Essas dívidas, na Irlanda, são três vezes maiores do que o PIB. Somando toda a dívida privada do planeta, cada passo, mesmo aquela que está nascendo agora, deve perto de 22 mil dólares.

Os tocadores de berrante na defesa dos sistemas de livre mercado e de capitais aqui, nos EUA e Europa também esquecem de dizer que os países do Reino Unido, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Suécia, Canadá, China, Japão, Coreia do Sul, Cingapura, Hong Kong e Austrália encontram-se em situação crítica por conta da dívida privada.

A Austrália, citada pelos austeros jornais econômicos do centro do capitalismo como economia sólida – e que só atravessou a recessão iniciada em 2008 sem choques devido a um grande aporte de subvenções e injeção de liquidez por parte do governo -, passou a ser uma das mais vulneráveis a uma grande crise da dívida.

O que esses defensores da economia regida pela abstração chamada ‘mercado’ deixam de falar é que a dívida privada absorve grande parte da renda de consumidores e de empresas. Como são muito poucas (e gigantesas) as instituições que controlam os papéis das dívidas, e como nada produzem, elas apenas retém lucros.

Além da concentração no controle das dívidas, o tal mercado sofreu profunda transformação e o setor industrial, no final do século passado em diante, passando a obter muito lucro no setor financeiro. Por conta da crise de 2008, os fabricantes de veículos foram ao fundo do poço. Elas ruíram porque a maior parte de seus lucros vinha do financiamento dos veículos, e não da fabricação. E sabe onde eles foram buscar dinheiro para sobreviver? No Estado público, mediante empréstimos, financiamentos e benesses que os fizessem sair do buraco e ainda garantindo seus lucros. É esse o Estado mínimo que eles desejam, que sirva somente a eles.

A grande bomba de 2008 arrefeceu. Porém, ainda hoje há muitos efeitos em países como Portugal, Espanha e, o exemplo mais terrível de todos, a Grécia. O desemprego é um desses efeitos. É fato que atualmente em muitas indústrias tradicionais mais da metade do faturamento não é resultado do processo industrial, mas de transações financeiras.

Para garantir a continuidade do seu projeto, o tal ‘mercado’ usa tribunais e polícias para garantir o prodigioso ganho de juros. Para tanto, defende “desregulamentações” e cria em seu lugar um outro sistema regulamentador que favorece quem deveria ser regulado.
Este ente, o ‘mercado’, mexeu tanto nas estruturas que os Estados passam a ter dificuldade para arrecadar tributos das empresas e dos empresários. A saída foi compensar com taxas e multas sobre as pessoas. Assim, cobra de muitos o que é dívida de poucos. Os Estados também acabaram entrando no negócio financeiro e também se endividaram junto às corporações financeiras, impulsionadas pelas desregulamentações, na maioria das vezes, defendidas pelos lobistas dos governantes de plantão. O lobby não é considerado corrupção, nem nos EUA, nem no Brasil. Nem o lucro. Mas fazer emendas constitucionais que mexem nos direitos das pessoas, dos trabalhadores, em nome dele, do ‘mercado’, isso pode?

Nós não podemos ficar calados diante da retirada de nossos direitos para garantir que poucas empresas tenham cada vez mais lucro.

PIB – representa a soma, em valores monetários, de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada região, durante um determinado período.

Para ler: Do antropólogo David Graeber, “Dívida – os primeiros cinco mil anos” | Em setembro de 2011, David Graeber estava no grupo que planejou um acampamento coletivo no Parque Zuccotti, em Nova York, para protestar contra a desigualdade econômica. Foi o início do movimento Occupy Wall Street |

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