A pesquisa do Núcleo de Estudos de Processos Psicossociais e de Saúde nas Organizações e no Trabalho (Neppot-UFSC) produziu uma fotografia da saúde mental e das condições de trabalho dos servidores do judiciário da região sul durante o isolamento imposto pela pandemia de Covid-19.
As informações foram coletadas entre os meses de setembro de 2021 e novembro de 2022, através de um questionário respondido voluntariamente por 1203 trabalhadores do TJSC, TJPR, TJRS, da Justiça Federal em Santa Catarina e do Ministério Público em Santa Catarina. Além do questionário, as pesquisadoras realizaram grupos focais com os servidores – uma espécie de entrevista coletiva com o objetivo de qualificar as informações coletadas anteriormente.
Confira aqui alguns dados selecionados e comentados pelo Fazendo Escola*.
Sobrecarga de trabalho
60,6% dos servidores fizeram hora extra não remunerada durante a pandemia. Destes, mais de 11% trabalharam mais do que 7 horas por semana. Isso significa que há um contingente de pessoas que trabalham 6 dias por semana.
Em períodos de alta demanda de trabalho, esses índices cresceram para, respectivamente, 70,4% e 18,5%.
O aumento nas horas de trabalho gera sobrecarga e é um fator de risco relacionado aos quadros de adoecimento mental entre trabalhadores. Além disso, a regulamentação da jornada é uma conquista histórica da classe trabalhadora. Aumentar o tempo de trabalho sem aumento de remuneração é, portanto, um retrocesso nos direitos.
É preciso contextualizar essa sobrecarga num quadro mais amplo que inclui também as tarefas não remuneradas. Durante a pandemia, 52,6% eram responsáveis por alguém que necessitava cuidados (crianças, pessoas adoecidas, idosos, etc). Esse índice é um pouco maior entre as mulheres.
Apesar da maioria fazer hora extra, menos da metade avalia que foi exposta a carga excessiva de trabalho. Esse índice é ainda menor entre as mulheres (44,2%) em relação aos homens (52,4%).
Esses dados acendem uma alerta em relação à naturalização da sobrecarga. Cabe questionar se não estamos normalizando o cansaço e falta de tempo livre, como se a vida fosse um anexo do trabalho.
Apesar de 73% dos servidores do TJSC terem declarado se sentir capazes de conciliar as tarefas do lar e o tempo de trabalho público durante a pandemia, os relatos coletados nos grupos focais apontam para uma sobrecarga cognitiva agravada pelo uso das tecnologias de comunicação.
Outros estudos demonstram que essas ferramentas tecnológicas muitas vezes ampliam o tempo dedicado ao trabalho, reduzindo as pausas e intensificando a carga mental, exigindo do trabalhador uma atenção quase constante e que invade espaços de tempo onde antes o trabalho não estava. Por conta disso, a questão do direito à desconexão vem sendo cada vez mais debatida entre os sindicatos. Este cenário de exaustão se agrava quando combinado com o modelo de “gestão por metas”, que, além de pressionar o servidor, acaba fazendo com que os próprios colegas passem a controlar e vigiar o trabalho de seus pares.
Metas, assédio e sofrimento
Outro dado produzido pela pesquisa aponta que 46,6% concordam que existe uma cobrança e pressão excessivas para o alcance de metas estabelecidas pelas instituições. Além disso, menos de 35% considera essas metas atingíveis e os prazos suficientes para a execução dos trabalhos.
A pressão pelo cumprimento de metas, ainda que apareça de forma sutil, pode configurar assédio moral. Quando se torna frequente, corre o risco de ser naturalizada, deixar de ser vista como forma de violência e passar a compor parte da “cultura” do ambiente de trabalho. Quando isso acontece, configura-se um quadro de assédio institucional.
21% dos servidores do TJSC que responderam ao questionário relataram ter sofrido humilhação e ridicularização em relação ao seu trabalho. A pesquisa registrou ainda 18 mulheres e 1 homem que declaram sofrer frequentemente atenção sexual indesejada no ambiente de trabalho.
As pesquisadoras afirmam que nos grupos focais foram mencionados diversos comportamentos negativos, sobretudo de superiores, que podem ser categorizados como assédio moral. Ou seja, o fato de estar em home office não livrou os servidores desse tipo de violência.
Se você está passando por uma situação desse tipo, entre em contato com o seu sindicato!
Percepção de suporte
Através do questionário, a equipe do NEPPOT usou instrumentos para medir a percepção dos servidores do judiciário em relação aos diferentes tipos de suporte necessários para o trabalho durante a pandemia. O suporte social se refere às redes de apoio e confiança entre as equipes, bem como a circulação de informação e o sentimento de solidariedade entre trabalhadores. Já o gerencial se refere ao apoio prestado pela chefia imediata. Enquanto o organizacional diz respeito a questões como sobrecarga de trabalho, estabelecimento de metas adequadas, reconhecimentos dos saberes de trabalhadores e apoio material.
Em média, o suporte social e o suporte gerencial foram avaliados como medianos, nem altos nem baixos. Já o suporte organizacional foi avaliado como baixo.
Falta de apoio, produtividade e adoecimento
Segundo a equipe de pesquisadoras, índices insuficientes de suporte de todos os tipos podem expor trabalhadores a uma maior predisposição ao sofrimento mental. Para elas, os resultados identificados na pesquisa apontam para a necessidade de promover institucionalmente ambientes laborais com maior apoio.
Quando uma instituição não oferece o apoio devido, ela acaba passando aos servidores a responsabilidade pelos custos, riscos e gestão de seu próprio trabalho. Isso acontece, por exemplo, quando se trabalha em home office e é preciso comprar mesas, cadeiras, iluminação e todo o necessário para executar as atividades em casa.
Podemos associar isso a um fenômeno mais amplo que chamamos de “uberização do trabalho” e que não atinge apenas motoristas ou entregadores por aplicativo. Você pode ler sobre isso na cartilha produzida pelo Fazendo Escola.
Avaliação de saúde mental e adoecimento
Ao responder a pergunta aberta sobre a avaliação de sua saúde mental durante o trabalho não presencial, 51% dos servidores deram respostas positivas. No entanto, o que chamou atenção das pesquisadoras é que as respostas negativas foram muito mais específicas na justificativa, indicando uma maior implicação dos envolvidos. A carga excessiva de trabalho somada à pressão, o isolamento e a confusão entre a vida privada e o trabalho aparecem em muitas respostas.
Pensando nas respostas positivas, é preciso considerar que a pesquisa foi feita durante a pandemia de Covid19. Poder trabalhar em casa naquele momento significava o direito de não se expor ao adoecimento, protegendo a própria vida.
39% dos servidores declararam que antes da pandemia tinham se afastado do trabalho. Somados, transtornos depressivo, mental, de ansiedade, de pânico e burnout, foram responsáveis por 40,3% dos afastamentos. Durante a pandemia, apenas 21% se afastaram e os mesmos transtornos foram responsáveis por 16,2% destes afastamentos. Uma hipótese a ser considerada é que as pessoas continuaram trabalhando apesar de processos de adoecimento.
Se o sofrimento é coletivo, a saída não pode ser individual!
Dados do próprio Tribunal de Justiça revelaram que de janeiro de 2022 a julho de 2023, 1.924 trabalhadores do judiciário catarinense acumularam 68.759 dias de afastamento do serviço por motivos de saúde. Diante desse quadro complexo, é preciso refletir coletivamente sobre o sentido das transformações recentes nas dinâmicas do trabalho. Muitas vezes as tecnologias aparecem como sinônimo de solução, avanço e modernização. No entanto, observamos o crescimento paralelo no adoecimento de trabalhadores e trabalhadoras.
O trabalho não pode ser fonte de sofrimento e dor. A saúde dos trabalhadores precisa ser considerada de maneira efetiva.
De maneira organizada, trabalhadores e trabalhadoras precisam defender a sua saúde. Afinal, se tirarem isso de nós, não sobra quase nada.
Por isso, fique atento às ações do sindicato sobre saúde, assédio e todas as formas de discriminações. Se você está com algum tipo de sofrimento causado pelo trabalho, passando por situações de assédio ou discriminação, entre em contato conosco pelo Conecte Sinjusc. Uma equipe especializada irá lhe atender.
* Os dados foram extraídos do Relatório da Pesquisa Impactos psicossociais do trabalho não presencial na saúde mental de Trabalhadores do Poder Judiciário, produzido por Suzana da Rosa Tolfo e Renata Carvalho Chinelato (professoras do Departamento de Psicologia da UFSC), Renato Tocchetto de Oliveira (servidor aposentado do MTE), Daena Paula Bourcheid e Maria Eduarda Jaruzo Morais (estudantes de graduação em psicologia da UFSC). Aqui na matéria nos referimos a equipe no feminino em consideração à maioria.
Excelente matéria, obrigado a equipe Sinjusc por nos representar com tamanho carinho e respeito com nosso direitos, em especial com a nossa saúde. As respostas as nossas dificuldades serão sempre coletivas. Avante!