Coerção e forma jurídica: política, direito (internacional) e o Estado

Por China Miéville, traduzido por Pedro Davoglio

Autor de livros de ficção científica e literatura fantástica premiados, como o “A cidade e a cidade”, recentemente publicado no Brasil, China Miéville, é também um reconhecido autor marxista, cuja pesquisa é dedicada ao estudo do direito internacional. Sua tese de doutorado “Between equal rights: A marxist theory of international law” talvez seja o maior cânon marxista sobre o estudo do direito internacional. No presente excerto, que é o capitulo 4 da referida tese, o autor revigora o pensamento de Evgeni Pachukanis, jurista soviético, para determinar as implicações da forma jurídica para o Estado e para o direito internacional.


 1. O problema da política

Muitos críticos afirmam que não há espaço para a política na teoria de Pachukanis: este é, aparentemente, o seu problema mais tenaz. À medida que a “administração” é vista como política, o argumento exposto anteriormente de que tal administração ainda é derivada da própria forma jurídica é uma tentativa de resposta a esta questão. Contudo, ela não é suficiente. Tal integração da administração no interior da teoria da forma-mercadoria contribui de algum modo demonstrando como práticas políticas particulares podem andar de mãos dadas com a forma jurídica, mas deixa intocado o problema de compreender sistematicamente a relação entre a forma e o conteúdo do direito.

O próprio Pachukanis esteve preocupado em destacar a importância de não fetichizar a política, o conteúdo do direito, como a fonte da desigualdade entre as classes. “As categorias jurídicas fundamentais não dependem do conteúdo concreto das normas jurídicas, isto é, elas conservam a sua significação, mesmo quando o conteúdo material concreto se altera de uma ou outra maneira.” (PACHUKANIS, 1978, p. 47 [1988, p. 17]) Ele descreve aqueles marxistas que focam no “conteúdo concreto das normas jurídicas e no desenvolvimento histórico das instituições jurídicas” como não tendo “responsabilidade sobre a jurisprudência” (PACHUKANIS, 1978, p. 54 [1988, p. 20]).

Não obstante, Pachukanis considerou o seu trabalho uma correção à tendência de analisar o conteúdo jurídico isoladamente. Isso não significa que tal conteúdo não seja importante – mas apenas que se deve proceder a partir de uma base correta. Ele aceita como “legítimo, até certo ponto” (PACHUKANIS, 1978, p. 55), focar no conteúdo. Mas, ao fazer isso, explica Pachukanis, “tudo que obtemos é uma teoria que explica a emergência da regulação jurídica a partir das necessidades materiais da sociedade, e deste modo fornece uma explicação do fato de que as normas jurídicas conformam-se às necessidades materiais de classes sociais particulares” (PACHUKANIS, 1978, p. 55). Este não é um ponto de partida ruim. Mas, para superarmos um nebuloso funcionalismo de esquerda, o conteúdo do direito deve ser considerado um conteúdo de uma forma particular.

A teoria de Pachukanis é uma teoria da forma jurídica, mas isso não quer dizer que ela seja hostil ao exame de conteúdos jurídicos particulares[1]. Mesmo um de seus críticos observa que “o trunfo teórico de Pachukanis (…) foi estabelecer uma ligação entre o fetichismo da forma e o fetichismo do conteúdo” (FINE, 1979, p. 34). Contudo, ele deixou por examinar os mecanismos da relação entre forma e conteúdo. É isso que o deixa vulnerável a críticas de que não há espaço para uma política do direito – uma política do conteúdo jurídico – no seu trabalho.

Essa lacuna pode ser mais bem abordada do interior da sua própria teoria. Afinal de contas, enquanto a politização das leis não compromete a compreensão da forma jurídica, apenas com uma compreensão adequada da forma jurídica é que se pode captar o sentido dos processos de “uso político” do direito.

Um dos seguidores modernos de Pachukanis coloca a questão sucintamente:

Pachukanis é criticado por negligenciar o papel do direito como um instrumento de dominação de classe nas mãos da classe capitalista. Contra isso, duas coisas devem ser ditas. A principal forma da dominação de classe no capitalismo, de acordo com Marx, é aquela que resulta da propriedade exclusiva sobre os meios de produção por parte da burguesia, que faz com que o restante da população seja efetivamente proprietário apenas da sua força de trabalho. A teoria de Pachukanis mostra satisfatoriamente como o direito serve a essa forma de dominação ao mesmo tempo em que parece proteger igualmente os direitos de propriedade tanto do trabalhador quanto do capitalista. Não obstante os usos ou abusos de direito perpetrados pelos detentores do poder, Pachukanis visa a nos dar apenas a estrutura geral do direito. Ele não nega que no interior dessa estrutura aqueles que detêm o poder de fazê-lo usarão o direito para servir aos seus próprios fins. (REIMAN, 1995, pp. 134-5)

Jessop é mais direto:

Pachukanis foi atacado por supostamente ignorar o papel decisivo desempenhado pela repressão na ordem jurídica e no Estado burgueses. Essa crítica é injustificada. Pois Pachukanis não apenas subscreve integralmente (não importa se errônea ou acertadamente) a visão marxista-leninista do estado como uma máquina de repressão de classe e enfatiza o papel da raison d’état e da pura conveniência em determinadas áreas de sua operação (…), mas também fornece uma avaliação explícita da aparência contraditória do direito como liberdade subjetiva combinada com regulação externa e, de fato, tende a conferir um peso maior ao papel da violência organizada do que à vontade individual na esfera do direito público… (JESSOP, 1990, p. 60)

Seria excessivamente simplista considerar a teoria do direito de Pachukanis uma garrafa vazia no interior da qual qualquer conteúdo poderia ser derramado. Isso seria conceituar conteúdo e forma separadamente, como qualidades isoladas de uma formação social e, portanto, falhar em compreender a interrelação dialética entre os dois. Como propõe Chris Arthur,

de um ponto de vista dialético uma forma é a forma do seu conteúdo, e devemos objetar desde o início qualquer um que imagine que Pachukanis procurou escrever um tratado sobre as formas jurídicas abstraindo do seu conteúdo. Isso seria uma incompreensão. Ao caracterizar o direito como uma forma burguesa ele claramente está relacionando o direito a um conteúdo material definido – as relações sociais fundadas na troca de mercadorias (ARTHUR, 1978, p. 29).

Mais dois passos precisam ser dados, contudo. O primeiro é lembrar que as relações sociais do capitalismo não são simplesmente “relações sociais fundadas na troca de mercadorias”, mas são também relações sociais de exploração das desigualdades que assumem a forma do assalariamento. Para que se dê conta da forma salário é imprescindível aqui o desenvolvimento da forma jurídica. Argumentei – ao contrário de Pachukanis – que a forma de mercadoria da força de trabalho sob o capitalismo permite que a mercadoria seja subsumida à forma jurídica em si.  Consequentemente, como a forma jurídica encarna o conteúdo concreto das relações sociais fundadas na troca de mercadorias, em que a própria força de trabalho é universalmente mercantilizada, sob o capitalismo a forma jurídica também penetrará as relações particulares de exploração de classe da exploração capitalista. Para que fique claro: não é além de encarnar a igualdade formal abstrata da troca simples de mercadorias, mas ao fazer isso sob as condições particulares do capitalismo, que a forma-salário, local da exploração, é trazida para dentro do reino do jurídico como uma forma-mercadoria.

Essas derivações permanecem, entretanto, em um nível muito abstrato: as relações sociais capitalistas podem se manifestar juridicamente de muitas maneiras. E essa manifestação pode não se dar unilateralmente em favor dos interesses do capital: a luta de classes é intrínseca ao capitalismo, e a tentativa de “domesticar” a resistência significa que leis “progressistas” podem ser aprovadas pela força da classe trabalhadora – embora estas leis possam se converter em vantagem para o capital. A discussão de Marx sobre a legislação que limitava o dia de trabalho, por exemplo, demonstra como, embora as leis tivessem sido feitas por pressão da classe trabalhadora, elas resultaram numa melhoria das capacidades produtivas do capital (MARX, 1976, pp. 604-7)[2].

A discussão de Marx sobre a legislação fabril é importante não apenas quando ele debate a questão de como as leis raramente estão “a favor” ou “contra” uma classe particular. De modo mais crucial, ele estabelece, mesmo que de uma maneira ainda incipiente, uma teoria da imposição de conteúdos particulares à forma jurídica.

O capitalista defende o seu direito de comprador quando ele tenta tornar o dia de trabalho tão longo quanto possível (…).  Por outro lado (…) o trabalhador defende o seu direito de vendedor quando deseja reduzir o dia de trabalho para uma duração normal particular. Há aqui, portanto, uma antinomia, de direito contra direito, ambos igualmente marcados pelo selo da lei de troca. Entre direitos iguais, a força decide. (MARX, 1976, p. 344, ênfase minha)

Marx separou a afirmação de Reiman de que “aqueles com o poder de fazê-lo, usarão o direito para servir aos seus próprios fins” (REIMAN, 1995, p. 135) em dois argumentos separados. Um é o de que é muito provável que os poderosos sejam capazes de acomodar ou cooptar quaisquer intenções progressistas que estejam embutidas numa lei particular. O outro, mais fundamental, é de que comumente são os representantes dos poderosos que de fato fazem as leis, que impõem conteúdos políticos particulares à forma jurídica abstrata. Se, no final das contas, “a força decide”, então não há uma batalha equânime entre capital e trabalho. No interior das fronteiras de um Estado-nação, o capital tem ao seu lado o poder legislativo, como um braço do Estado burguês. Mas é ao flanco judicial do estado que, institucionalmente, dá-se o poder de forçar um conteúdo particular para dentro da forma jurídica.

Por que o estado e o direito tomam o lado do capital? Uma razão óbvia, apontada por Miliband, pode ser a posição de classe do judiciário.

As elites judiciais, como outras elites do sistema estatal, são montadas a partir dos estratos superiores e médios da sociedade: e aqueles juízes que não são provenientes daí claramente passam a integrá-los a partir do momento em que assumem seus cargos. Além disso, a inclinação conservadora que a sua situação de classe está então predisposta a criar é aqui reforçada fortemente pelo fato de que os juízes são (…) também recrutados dentre profissionais jurídicos, cuja disposição ideológica é tradicionalmente talhada em moldes altamente conservadores (…). Além disso, os governos que estão em posição de nomeação e promoção de juízes são mais suscetíveis de favorecerem homens que tenham precisamente essas disposições conservadoras  (…). A razão por que essas disposições ideológicas são importantes é óbvia – elas afetam muito a maneira como a função judicial é desempenhada. É geralmente aceito que juízes não são “máquinas de vender direitos”, ou os prisioneiros indefesos de um conjunto de marcos legais ou meros expositores do direito tal como eles o encontram (…). Há espaço, inevitavelmente, para a discricionariedade do juiz na aplicação do direito e para a criatividade judicial no afazer jurídico contemporâneo (…). Ao interpretar e criar o direito, os juízes não podem deixar de estar profundamente afetados pela sua visão de mundo. (MILIBAND, 1969, pp. 124-6)

Há pouco com que se discordar aqui, por mais longe que se vá. O problema com a posição de Miliband é a implicação pouco convincente de que a natureza capitalista do Estado (e do judiciário) burguês é essencialmente contingente à sua estrutura, e está arraigada exclusivamente ou mesmo primordialmente nas atitudes dos seus agentes.

O apontamento de Miliband de que o judiciário é um local de criação de direito está, contudo, absolutamente correto e encaixa-se perfeitamente à ênfase de McDougal no papel criativo da interpretação dos estatutos de direito internacional. Dentro dos limites de uma nação, é o estado enquanto autoridade suprema e os seus agentes que têm a autoridade final sobre a interpretação – e por isso a criação – do direito. Não é isso que acontece no direito internacional, e as implicações desta diferença se tornarão claras.

Se rejeitarmos a teoria do direito de Miliband, apesar de reconhecermos o monopólio estatal da interpretação jurídica autorizada no âmbito doméstico, a questão de como compreender o estado capitalista torna-se muito importante, tanto para captar o seu sentido como árbitro final do direito doméstico como para compreendê-lo como unidade do direito internacional. O escopo deste debate enorme só pode ser tocado de passagem aqui. Um aspecto do debate do estado, no entanto, é muito importante para este capítulo: o próprio Pachukanis é visto frequentemente como uma figura fundadora de uma teoria particular do Estado.

2. Pachukanis e a teoria da derivação do Estado

Tem-se afirmado que, como uma parte de sua teoria do direito, Pachukanis elaborou uma teoria do Estado burguês. Escritores associados àquilo que é compreendido como a sua posição são conhecidos como escola “lógica do capital” ou da “derivação do estado” – embora os autores abrangidos por essa definição discordem sobre muitos temas, eles estão unidos por um ponto de partida metodológico abstrato.

A principal preocupação da chamada da escola “lógica do capital” é derivar a forma do estado capitalista da natureza do capital e/ou estabelecer os pré-requisitos funcionais da acumulação cuja satisfação deve ser mediada pela atividade estatal. (JESSOP, 1990, p. 52)

A condição de Pachukanis como um padroeiro dessa escola é amplamente aceita, o que quer que se pense propriamente sobre ela[3], porque se afirma que ele “tentou derivar a forma histórica específica do direito burguês e o Estado a ele associado das qualidades essenciais da circulação de mercadorias sob o capitalismo”[4] (JESSOP, 1990, p. 52, ênfase minha).

Se isso estiver correto, então há no coração da própria teoria de Pachukanis um modelo daquele corpo coercitivo com monopólio do poder sobre a regulação jurídica doméstica. Se a forma jurídica é tornada concreta por meio dos poderes coercitivos do Estado burguês, e se o Estado burguês é derivado das mesmas relações sociais que o direito, uma sofisticada circularidade emerge. Isso responderia claramente à acusação de que Pachukanis falha em teorizar o político – isto é, os aspectos coercitivos do direito.

O ponto de partida para muitos dos derivacionistas do estado é a seguinte questão formulada por Pachukanis:

Por que é que o domínio de classe não se mantém naquilo que é, a saber, a subordinação de uma parte da população a outra? Por que é que ele reveste a forma de um domínio estatal oficial ou, o que significa o mesmo, por que é que o aparelho de coação estatal não se impõe como aparelho privado da classe dominante, por que é que ele se separa desta última e reveste a forma de um aparelho de poder público impessoal, deslocado da sociedade? (PACHUKANIS, 1978, p. 139 [1988, p. 95])

O argumento é que Pachukanis deriva o estado burguês, com a sua aparente neutralidade, sua irredutibilidade a um conjunto de interesses particularistas, das necessidades da mercantilização generalizada. Dada a universalização dos indivíduos jurídicos abstratos, apenas um árbitro abstrato em relação às exigências dos competidores – o Estado burguês – pode manter a sua igualdade formal. Jessop resume esta posição admiravelmente. No contexto de sua teoria do sujeito de direito,

Pachukanis tentou derivar a forma do Estado burguês como um aparelho de poder público impessoal distinto da esfera privada da sociedade civil. Ele argumenta que a forma jurídica do Rechtstaat (ou Estado baseado constitucionalmente no princípio da legalidade) característica das sociedades burguesas é exigida pela natureza das relações de mercado entre indivíduos livres e iguais. Estas devem ser mediadas, fiscalizadas e garantidas por um sujeito coletivo abstrato dotado de autoridade para fazer cumprir os direitos no interesse de todas as partes das transações jurídicas (JESSOP, 1990, p. 53).

Muito da teoria “derivacionista” é fascinante e fecundo teoricamente[5]. A questão, entretanto, é se a teoria do direito de Pachukanis e a sua aparente teoria do Estado são realmente inextrincáveis. Nós deveríamos começar examinando aquelas afirmações em que Pachukanis parece “derivar” o estado mais claramente.

A dominação de fato assume um pronunciado caráter jurídico, de direito público desde que, ao lado e independentemente dele, surgem relações que estão ligadas ao ato de troca, isto é, relações privadas por excelência. Na medida em que a autoridade aparece como o fiador destas relações, impõe-se como autoridade social um poder público, que representa o interesse impessoal da ordem. (PACHUKANIS, 1978, p. 137 [1988, pp. 92-3])

Na medida em que a sociedade representa um mercado, a máquina do Estado estabelece-se, com efeito, como a vontade geral, impessoal, como a autoridade do direito etc. No mercado, como já foi visto, cada consumidor e cada vendedor é um sujeito jurídico por excelência. Nesse momento, quando entram em cena as categorias do valor, e do valor de troca, a vontade autônoma dos que trocam impõe-se como condição indispensável… A coerção, enquanto imposição fundamentada na violência colocando um indivíduo contra o outro, contradiz as premissas fundamentais das relações entre os proprietários de mercadorias. É por isso que, numa sociedade de proprietários de mercadorias e dentro dos limites do ato de troca, a função de coação não pode aparecer como uma função social, visto que ela não é abstrata e impessoal. A subordinação a um homem como tal, enquanto indivíduo concreto, significa na sociedade de produção mercantil a subordinação de um proprietário de mercadorias perante outro. Eis a razão por que também aqui a coação não pode surgir sob a forma não camuflada, como um simples ato de oportunidade. Ela deve aparecer antes como uma coação proveniente de uma pessoa coletiva abstrata e que é exercida não no interesse do indivíduo donde provém (…) mas no interesse de todos os membros que participam das relações jurídicas. (PACHUKANIS, 1978, p. 143 [1988, pp. 97-8])

A teoria conforme descrita é intuitivamente atraente. Ela faz sentido como uma explicação do porquê é funcional para o capitalismo ter uma autoridade estatal abstrata garantindo a forma jurídica, e que, ao fazer isso, dá a essa forma um conteúdo concreto. Contudo, Pachukanis não vê o estado em si mesmo como logicamente necessário ao capitalismo.

A maioria das afirmações feitas em seu capítulo sobre “Direito e estado” (PACHUKANIS, 1978, pp. 134-50 [1988, pp. 90-103]) é histórica e mais ou menos contingente, em vez de rigorosamente lógica e necessária. Por exemplo: “à medida que o poder feudal assumiu o papel de fiador da paz, indispensável aos contratos de trocas, graças às suas novas funções, ele assumiu um novo caráter público que no começo lhe era estranho” (PACHUKANIS, 1978, p. 136 [1988, pp. 91-2], ênfase no original). Isso pode significar que o novo papel do poder feudal como um Estado abstrato o tenha tornado peculiarmente adequado a ser árbitro do direito, mas isso não é uma afirmação sobre a necessidade ou derivação da forma estatal burguesa.

Há outras formulações como essa: “o Estado moderno, no sentido burguês da palavra, surge no momento em que a organização do poder de grupo ou de classe abrange relações mercantis suficientemente extensas” (PACHUKANIS, 1978, p. 136 [1988, p.92]). “Ao lado do domínio de classe, direto e imediato, nasce um domínio mediato, refletido sob a forma do poder de Estado oficial enquanto poder particular, separado da sociedade.” (PACHUKANIS, 1978, p. 138 [1988, p. 94]) Essas afirmações podem ser verdadeiras. Mas elas são históricas e sugestivas, mais do que uma teoria sistemática da derivação do Estado.

Coisa, aliás, que elas nem pretenderam ser. No exato coração de sua suposta derivação, após ter exposto a “questão clássica” (BLANKE; JÜRGENS; KASTENDIEK, 1978, p. 121) sobre o porquê de a dominação de classe assumir a forma de um mecanismo impessoal, Pachukanis toma teorias inadequadas como objeto:

Não podemos nos contentar com a explicação segundo a qual é vantajoso para a classe dominante erigir um cenário ideológico e camuflar o seu domínio de classe por trás do paravento do Estado. Porque, embora tal explicação seja, sem dúvida alguma, correta, ela não determina a razão para que tal ideologia possa nascer e também, por conseguinte, por que razão a classe dominante pode servir-se dela. (PACHUKANIS, 1978, pp.139-40 [1988, p. 95], ênfase minha)

Assim, no ponto exato em que está exigindo rigor na teorização do Estado, o que ele insiste que precisa ser explicado é como o estado burguês abstrato pode surgir, não como “surgiu” ou como “deve surgir”. Assim, apesar de ele usar o termo “derivação”, esta não é uma teoria “derivacionista” em sentido forte.

Nada disso pretende negar que há um papel funcional poderoso no Estado burguês abstrato, nem que a teoria de Pachukanis faz um excelente trabalho ao demonstrar o porquê. O que se quer é mostrar que não há uma teoria da forma do estado burguês a ser “derivada” da teoria de Pachukanis, e que nem mesmo ele próprio pensou que houvesse.

Consideremos um aparte revelador. Novamente, no coração do seu momento aparentemente mais “derivacionista”, quando Pachukanis pergunta por que o aparelho de Estado não é um “aparelho privado da classe dominante”, mas “um aparelho de poder público impessoal, deslocado da sociedade” (PACHUKANIS, 1980a, p. 94 [1988, p. 95]), uma nota de rodapé chama a atenção.

Em nossa época, em que as lutas revolucionárias se intensificaram, podemos observar como o aparelho oficial do Estado burguês cede lugar às organizações armadas fascistas etc. Isto nos prova ainda mais uma vez que, quando abalado o equilíbrio da sociedade, esta não procura a sua salvação na criação de um poder situado acima das classes, mas na tensão máxima de todas as forças das classes em conflito. (PACHUKANIS, 1980a, p. 130, nota 47 [1988, p. 95, nota 129])

Assim, não há nada de inevitável na forma particular do Estado burguês. Mesmo que destaque a importância do Estado “abstrato” burguês, Pachukanis recorda ao leitor de que em conjunturas históricas particulares o próprio estado procurará alternativas, que incluem métodos menos abstratos para atingir seus fins, sem cessar de ser um estado capitalista: é o “aparelho oficial” que recua, não o Estado em si, que neste caso é o seu próprio corpo “procurando a sua salvação” por meio do recurso ao fascismo.

Admite-se que há momentos em que Pachukanis faz afirmações mais firmes em favor da tese da derivação. A longa passagem acima, em que ele fala sobre a coerção necessária sob o capitalismo e por que ela deve assumir a forma estatal burguesa representam, mais do que quaisquer outras, sua tentativa de derivar lógica e sistematicamente a necessidade de um Estado abstrato. Mas ela está baseada em uma falsa premissa.

“A coerção”, escreve ele, “enquanto imposição fundamentada na violência, colocando um indivíduo contra o outro, contradiz as premissas fundamentais das relações entre os proprietários de mercadorias.” (PACHUKANIS, 1978, p. 143 [1988, p. 97]) Isso é absolutamente falso, e é um deslize característico – às vezes o formalismo excessivo de Pachukanis o leva a negligenciar a “riqueza” das contradições dialéticas inerentes às categorias aparentemente estáveis.

Eu argumentei que, contrariamente a algumas afirmações de Pachukanis, a disputa e a contestação são intrínsecas à mercadoria, à medida que a propriedade privada sobre ela implica a exclusão dos outros. De modo similar, a violência – coerção – está no coração da forma-mercadoria e também no do contrato. Para uma mercadoria significar incontestavelmente “minha-e-não-sua” – o que está, afinal, no centro do fato de que ela é uma mercadoria a ser trocada – algumas capacidades estão inevitavelmente implicadas. Se não houvesse nada capaz de sustentar que “o meu é meu”, não haveria nada que o impedisse de ser “seu”, e então ele não seria mais uma mercadoria, já que eu não o estaria trocando. A coerção está implícita. “Se a categoria do contrato, um ato conjunto de vontade fundado no mútuo reconhecimento, é considerada o modus original do direito, então ele é claramente uma forma que não pode existir sem constrangimento.”[6] (BLANKE, JÜRGENS; KASTENDIEK, 1978, p. 123)

E, num nível um pouco maior de concretude, levando a análise do nível individual para o social, a força deve ser uma condição geral para a manutenção das relações mercantis.

A razão é muito simples. As relações de propriedade existentes [i.e., não ainda relações de produção] sistematicamente separam os produtores dos objetos das suas necessidades, em uma base diária e contínua. Na produção de mercadorias, “necessidade” e “direito” permanecem opostos. A organização da sociedade existente constantemente impele os indivíduos, grupos, classes e outras coletividades a (…) “invadir os direitos dos outros”. Os motivos para violar, furtar, invadir, oprimir, roubar e transgredir de maneira geral os direitos de propriedade são continuamente recriados por meio da pressão das necessidades materiais.

Por isso esse sistema de relações sociais de produção gera uma exigência geral e permanente por meios de “defesa”, i.e., por meios de violência e sua organização. Sem uma constante ameaça e/ou aplicação de força, a produção de mercadorias correria o risco de rápida subversão e quebra. (BARKER, 1998, p. 27)

Em outras palavras, e contrariamente à afirmação feita por Pachukanis, a coerção escudada pela força está implicada de forma generalizada (e “é endereçada de uma pessoa a outra” – i.e., por todos os proprietários de mercadorias a todos os outros proprietários de mercadorias) na própria natureza da troca e produção de mercadorias. Para Barker, como a própria violência aparece como mais fundamental – no coração da mercadoria –, “a organização social da força necessária e a questão específica do estado ainda aguardam desenvolvimentos suplementares” (BARKER, 1998, p. 28).

Em outros termos, a passagem anômala em que Pachukanis parece ver o Estado abstrato como necessário é somente uma consequência de sua afirmação ocasional e errônea de que a violência não está no coração da mercadoria (eu devo mostrar em algum lugar deste texto que ele mantém uma percepção muito mais persuasiva da violência embutida). Na percepção de que a violência é integral à troca de mercadorias, a “política” – força coercitiva, violência – é trazida para mais perto, mas a sua forma específica – neste caso, o Estado burguês – não é tão fundamental, e certamente não é “necessária”.

Na maior parte do tempo, portanto, Pachukanis expõe explicitamente que a sua posição não é sistematicamente derivacionista, mas apenas o suficiente. E, mais ainda, no momento em que ele de fato tenta derivar a necessidade do Estado, a sua análise se quebra pois suas categorias não estão suficientemente nuançadas. Algumas das leituras mais interessantes de Pachukanis feitas pelos teóricos da derivação do Estado apontam a necessidade da política, mas não implicam a forma estatal burguesa. O seu foco na liberdade e na igualdade dos sujeitos da troca, dizem eles

nos levam (…) à categoria da forma jurídica e à necessidade de uma força que garanta o direito, uma força que se pode chamar de uma força (coercitiva) extraeconômica. Com isso queremos nos referir não tanto ao aparelho organizado (ou instrumento), mas essencialmente apenas a uma função básica que pode ser derivada no nível conceitual da análise da forma. Com isso, de modo algum chegamos “ao Estado”, mas a diferentes formas de relações sociais, nomeadamente relações econômicas e políticas, que são peculiares ao modo de produção burguês (BLANKE; JÜRGENS; KASTENDIEK, 1978, p. 121).

A teoria de Pachukanis implica coerção e política, mas não implica a necessidade de uma forma particular de organização dessa coerção. O Estado certamente “introduz clareza e estabilidade à estrutura jurídica” (PACHUKANIS, 1980a, p. 68), mas esta é uma função secundária.

Essa rejeição da teoria “lógica do capital” do Estado é importante: emerge daí que a ausência de uma teoria da derivação do estado em Pachukanis é a chave para compreender a natureza do direito e do direito internacional.

3. Direito (internacional) e contingência do estado

Longe de ser derivado, para Pachukanis o estado, como um árbitro abstrato, uma autoridade pública, é de fato contingente à forma jurídica. É isto que faz dele um teórico tão vital para o direito internacional: ele torna claro uma vez seguida da outra que a ausência de um soberano não faz do direito internacional menos “direito”. Pachukanis não nega a necessidade da coerção, mas está claro que uma coerção abrangente e abstrata, que “introduz estabilidade” e é funcional ao capitalismo que não está em crise, é extrínseca à forma jurídica em si.

É óbvio que a ideia de uma coerção externa, tanto idealmente quanto na sua organização material, constitui um aspecto essencial da forma jurídica. Quando nenhum mecanismo coercitivo foi organizado, e não se pode contar com a jurisdição de um aparelho especial que permanece acima dos partidos, ele aparece na forma de uma dita “interdependência”. O princípio da interdependência, sob as condições do equilíbrio de poder, representa a base singular, e pode-se dizer, instável, do direito internacional. (PACHUKANIS, 1980a, p. 108)

Nesse ensaio negligenciado sobre direito internacional, Pachukanis execra a jurisprudência burguesa pela quantidade de tinta gasta na questão de se a ausência de uma autoridade suprema significa que o direito internacional não é direito. Ele esclarece que tal autoridade não é necessária ou imanente ao direito.

Não importa o quão eloquentemente a existência do direito internacional seja provada, o fato da ausência de uma força organizacional que possa coagir um Estado com a mesma facilidade que um Estado coage um indivíduo permanece um fato. A única garantia real de que as relações entre Estados burgueses (…) repousam sobre a base da troca de equivalentes, i.e., uma base jurídica (na base do reconhecimento mútuo de subjetividades), é o equilíbrio de forças de fato.[7] (PACHUKANIS, 1980b, p. 179)

Sem nenhuma surpresa, toda vez que Pachukanis destaca a contingência da coerção externa organizada em relação ao direito, o direito internacional é usado como um exemplo. Tome-se a discussão em seu capítulo sobre “Norma e relação”, que é provavelmente a exposição mais rigorosa e cuidadosa do caso.

Nós podemos modificar a proposição mencionada e colocar em primeiro lugar não já a norma como tal, mas as forças objetivas reguladoras e atuantes na sociedade (…) se se entende como tal uma ordem particular, organizada conscientemente que garante e preserva essas relações, o erro lógico torna-se então inteiramente claro. Com efeito, não se pode afirmar que a relação entre credor e devedor seja criada pelo sistema coativo de cumprimento de dívidas existentes no Estado em questão. Esta ordem, existente objetivamente, garante certamente a relação, preserva-a, mas em nenhum caso a cria (…) podem-se imaginar os mais diversos graus de perfeição no funcionamento desta regulamentação social, exterior e coativa, e por conseguinte os mais diversos graus na preservação de certas relações (…) sem que estas relações sofram a menor modificação na sua própria existência. Podemos também imaginar um caso limite em que não exista, ao lado das duas partes que mutuamente entram em relação, uma terceira força capaz de estabelecer uma norma e de garantir a sua observância: por exemplo, um contrato qualquer entre habitantes do Var e os gregos. Contudo, mesmo neste caso, a relação permanece. (PACHUKANIS, 1978, pp. 88-9 [1988, p. 50]. As três primeiras ênfases estão no original, a final é minha.)

Daí Pachukanis segue para uma nota de rodapé reveladora.

Todo o sistema jurídico feudal baseava-se em tais relações contratuais não garantidas por qualquer “terceira força”. Igualmente o direito internacional moderno não conhece nenhuma coação organizada do exterior. Com certeza tais relações jurídicas não garantidas não se caracterizam pela sua estabilidade, mas isso não nos outorga o direito de negar a sua existência. (PACHUKANIS, 1978, p. 89, nota 9. [1988, pp. 50-1, nota 60])

Está claro que Pachukanis vê a autoridade abrangente ou qualquer forma particular de estado como contingente à relação jurídica existente entre duas partes formalmente iguais no contexto de uma relação de troca. No entanto, ele vai mais longe do que isso. Para Pachukanis, o próprio direito – em sua forma embrionária primeva – é um produto precisamente da ausência de tal autoridade.

O desenvolvimento do direito como sistema não foi gerado pelas exigências das relações de domínio, mas pelas exigências das trocas comerciais com aqueles povos que ainda não se encontram aglutinados numa esfera de poder único (…). As relações comerciais com as tribos estrangeiras, com os peregrinos, com os plebeus [em Roma…] originaram o jus gentium, esse modelo de superestrutura jurídica na sua forma pura. Contrariamente ao jus civile e às suas morosas formalidades, o jus gentium rejeita tudo o que não está ligado ao fim e à natureza da relação econômica que o fundamenta (…). Gumplowicz (…) engana-se quando pensa que o sistema do direito privado poderia desenvolver-se (…) derivando do poder público. (PACHUKANIS, 1980a, p. 69 [1988, p. 56], ênfase minha)

Para o estudioso do direito internacional, esta é uma iluminação teórica colossal. O debate considerado por Pachukanis em seu ensaio sobre o direito internacional não foi, depois de tudo isso, deixado para trás. “A preocupação central” desta disciplina, e cuja possibilidade de uma “resposta teórica” foi ‘rejeitada” por grande parte da teoria jurídica moderna[8] (KENNEDY, 1996, p. 400), é como, com a falta de uma autoridade suprema, o direito internacional pode ser direito. Pachukanis resolveu aqui, de passagem, o problema mais tenaz da juridicidade de um sistema jurídico descentralizado.

Para a teoria da forma-mercadoria, o direito internacional e o doméstico são dois momentos da mesma forma. Pachukanis afirma que o (proto-)direito internacional antecede historicamente o direito doméstico, não tendo isto nada que ver com qualquer primado ontológico putativo da esfera internacional: é, em vez disso, porque o direito é promovido por e necessário à relação de troca sistemática de mercadorias, ocorrida entre grupos organizados mas desiguais, que tais relações surgiram[9].

É claro que aí está apenas o gérmen do direito internacional. Para Pachukanis “o Tratado de Vestfália [em 1648…] é considerado o fato básico no desenvolvimento histórico do direito internacional moderno (i.e. burguês)” (PACHUKANIS, 1980b, p. 174). Pachukanis não oferece uma história do direito internacional teoricamente informada – as suas proposições históricas são úteis, mas esquemáticas. Ele esclarece, no entanto, que “apenas enquanto Estado burguês é que o Estado se torna completamente o sujeito do direito internacional” (PACHUKANIS 1980b, p. 174).

Em um nível isso é tautológico: a noção moderna do que seja “internacional” é inextrincável do desenvolvimento do Estado-nação, uma forma essencialmente moderna (capitalista). Nesse sentido, o direito internacional é por definição uma forma capitalista. No entanto, o que Pachukanis está enfatizando é que é nesta época que se encontram as mudanças que subjazem “à teoria do Estado como o sujeito solitário da comunidade jurídica internacional” (PACHUKANIS 1980b, pp. 173–4). Em outras palavras, o que nós poderíamos chamar de um proto-direito internacional, a forma jurídica que regula as relações entre grupos sociais organizados, precede o capitalismo e o Estado burguês. Apenas quando o estado burguês se torna o sujeito central dessas relações é que nós podemos com pleno sentido chamá-lo de direito internacional: isto é, quando o “internacional” nasce. Mas a forma das relações já existia.

Enquanto forma separada que coloca a si mesma fora da sociedade, o Estado emergiu em sua forma final apenas no período moderno capitalista burguês. Mas isso não quer dizer que as formas contemporâneas das relações jurídicas internacionais, e as instituições individuais de direito internacional, só surgem em tempos muito recentes. Contrariamente, elas traçam a sua história nos períodos mais antigos das sociedades de classes ou mesmo pré-classes. À medida que, inicialmente, a troca não era feita entre indivíduos, mas entre tribos e comunidades, pode-se afirmar que as instituições de direito internacional são as mais antigas instituições jurídicas em geral. (PACHUKANIS 1980b, p. 175)

Assim, o Estado é central para o desenvolvimento do direito, tanto doméstico quanto internacional, mas não para a forma jurídica em si[10].

4. Direito (internacional), política e violência

Há um problema em Pachukanis. Por um lado ele enfatiza a “juridicidade” das relações jurídicas sem uma autoridade suprema. Por outro, nós vimos que em certo ponto ele declara que a coerção, “enquanto imperativo endereçado de uma pessoa para a outra, e baseado na força”, é prejudicial às relações de mercadoria (PACHUKANIS, 1978, p. 143). O direito, entretanto, claramente exige força, como Pachukanis esclarece[11]. De onde, então, uma violência coercitiva do direito viria se não houvesse um Estado abstrato?

Eu argumentei, contra Pachukanis, que a violência e a coerção são imanentes às próprias relações de mercadoria. Se isso for aceito, o problema desaparece à medida que se torna claro que nos sistemas jurídicos sem autoridades supremas a autotutela – a violência coercitiva dos próprios sujeitos de direito – regula as relações jurídicas. A importância desta solução ao paradoxo de Pachukanis não deve ser superestimada. Mas ela é crucial para que se compreendam os mecanismos de direito internacional e a forma jurídica, e está no coração de uma análise pachukaniana do direito internacional e do imperialismo.

Está claro também que, não obstante os seus próprios comentários ocasionais em contrário, ao longo de todo o seu trabalho – particularmente quando discutiu o direito internacional – Pachukanis entendeu que esta era a natureza da coerção jurídica sem uma força suprema. Ele cita a “interdependência” ou “reciprocidade” “sob condições de equilíbrio de poder” (PACHUKANIS, 1980a, p. 108) ou de “equilíbrio real de forças” (PACHUKANIS, 1980b, p. 179) – um pano de fundo das relações mediadas por força – como a base da regulação jurídica internacional.

Na verdade, a compreensão de Pachukanis sobre a interpenetração entre força coercitiva e forma jurídica é profunda e sistemática, e não está isolada da sua discussão sobre direito internacional. Contradizendo a sua própria afirmação de que a coerção é antagônica à relação de mercadoria ele diz, por exemplo, que

a relação jurídica não pressupõe “por sua natureza” um Estado de paz do mesmo modo que o comércio não (…) impossibilita o roubo armado, mas anda de mãos dadas com ele. O direito e a autotutela, mesmo que pareçam conceitos contraditórios estão, na verdade, intimamente ligados (PACHUKANIS, 1978, p. 134, ênfase minha).

Compreender, como Pachukanis claramente faz, que o roubo (posse não consensual da mercadoria de outrem) anda “de mãos dadas” com o comércio (troca consensual de mercadorias), significa compreender que a violência está implícita na forma mercadoria, e consequentemente na forma jurídica. Se “meu” implica força para evitar que algo se torne “seu”, então o roubo é a falha desta força, e o sucesso de outra. Para Pachukanis, “ordem é na verdade uma mera tendência e um resultado final (jamais perfeitamente conquistado), mas nunca o ponto de chegada e o pré-requisito das relações jurídicas” (PACHUKANIS, 1978, p. 135).

Comparada a isso, e tendo-se em mente que a percepção da centralidade da coerção para o direito não está restrita a teóricos radicais, mas tem sido parte de algumas correntes dominantes da filosofia do direito desde pelo menos o final do século XIX (cf. JHERING, 1924, pp. 176–218 e passim), a incapacidade da maior parte das correntes dominantes do direito internacional de pensarem as sanções e a violência fica patente. Mesmo que obviamente haja exceções, a grande quantidade de escritos sobre este tópico e o reaparecimento repetitivo desse problema é fruto da petulância dos acadêmicos, para quem “a coerção acompanha o direito como uma sombra” (ZOLLER, 1984, p. xi), e de uma concomitante evasão da análise fantasiada de uma recusa de mentes elevadas em serem absorvidas por detalhes vulgares. “Está claro”, diz Shearer, por exemplo,

que uma exposição completa da (…) obrigatoriedade de uma força [no direito internacional], que abranja todos os casos e condições, seria dificilmente praticável. No entanto, há algo de pedante na própria noção de que tal exposição compreensiva é necessária ou desejável (SHEARER, 1994, p. 27).

Esse colapso da análise atinge níveis surpreendentes de crueza.

À parte as sanções e pressões (…) os principais elementos que reforçam o caráter obrigatório das regras de direito internacional são os fatos empíricos de que os Estados insistirão em seus direitos sob tais regras contra Estados que eles consideram que deveriam observá-las, e que os Estados reconhecem o direito internacional como obrigatório a eles (…). As razões derradeiras que impelem os Estados a apoiarem a observância do direito internacional pertence ao domínio da ciência política, e não pode ser explicada por uma análise estritamente jurídica. (SHEARER, 1994, p. 27.)

Shearer alega que a força de obrigatoriedade do direito internacional repousa sobre o fato de que os Estados a observam. Essa afirmação do fato a ser explicado como a sua própria explicação é claramente sem sentido. Como que ciente de que esta explicação não é satisfatória, Shearer descarta de modo débil esta questão como pertencente à ciência política e não ao direito. Ele está absolutamente certo em concluir o seu capítulo observando que “o problema da força de obrigatoriedade do direito internacional resolve-se em última instância juntamente com o problema do caráter obrigatório do direito em geral” (SHEARER, 1994, p. 27), mas como excluiu qualquer exame da sistematicidade da violência no direito ou no direito internacional, ele não pode nem mesmo abordar uma solução. De modo similar, Akehurst afirma que

não é convincente estudar qualquer sistema jurídico em termos de sanções. É melhor estudar o direito como um corpo de regras que geralmente são obedecidas, sem se concentrar exclusivamente no que ocorre quando as regras são quebradas. Não se deve confundir a patologia do direito com o próprio direito (AKEHURST, 1987, p. 7, ênfase minha).

Aqui o fracasso da análise é resoluto. A noção de transgressão do direito, de disputas moderadas pela coerção, é patológica ao direito, é extraordinária, em vez de elemento fundamental do tecido jurídico. Em contraste, Pachukanis casualmente esclarece isso.

A Russkaya Pravda (…) contém 43 artigos (…). Apenas dois artigos não estão relacionados com violações do direito civil ou criminal. Os artigos restantes ou determinam uma sanção, ou então contêm as regras procedimentais aplicáveis quando uma regra foi violada. Por conseguinte, a transgressão à norma sempre constitui a sua premissa. (PACHUKANIS, 1980a, p. 110, ênfase minha)

Direito e violência estão inextrincavelmente ligados como reguladores de reivindicações soberanas. Pachukanis pode, então, esquadrinhar dois pontos de vista aparentemente opostos em Marx. Um é a ênfase na igualdade jurídica e na troca de equivalentes. O outro é a afirmação de que “até mesmo o direito do mais forte é direito”[12] (MARX  apud PACHUKANIS, 1978, p. 134). Mediando essas duas concepções, e uma solução ao paradoxo de Pachukanis apresentado acima, há outra passagem de Marx: “entre direitos iguais, quem decide é a força” (MARX, 1976, p. 344, ênfase minha).

Por um lado, o direito é uma relação abstrata entre dois iguais, por outro, Marx indica a imposição nua do poder como uma forma jurídica. “Isso não é um paradoxo”, esclarece Pachukanis, já que “o direito, como a troca, é um expediente ao qual recorrem elementos sociais isolados em suas relações uns com os outros” (PACHUKANIS 1978, p. 134) – bem como a violência. Na ausência de uma “terceira força” abstrata, a única violência regulatória capaz de defender a forma jurídica, e de preenchê-la com um conteúdo particular, é a violência de um dos participantes.

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