Eliana Regina Fagundes Faustino*
Segunda-feira. Faltavam apenas oito dias para a sessão de julgamento, no plenário do júri, de ré acusada de homicídio. Nesse dia, soubemos que minha colega (advogada com quem eu havia trabalhado durante a semana) testou positivo para a COVID-19.
No domingo, eu já apresentava alguns sintomas. Imediatamente, apresentamos requerimento ao juízo, pedindo a redesignação da sessão, juntando documentos médicos da colega e informando que eu também podia ter sido contaminada (inclusive fui orientada pelo médico a coletar material para realização de exames entre três e cinco dias após o primeiro sintoma, no domingo). Peticionamos.
O juízo indeferiu o pedido e me intimou para apresentar o exame PCR o mais breve possível. Contudo, como o exame seria realizado apenas na quinta ou sexta-feira seguinte, talvez chegássemos à data do júri sem o resultado e, pior, com chance de eu estar contaminada.
Juntou-se aos autos o atestado e as orientações médicas para isolamento por quatorze dias ou até resultado negativo do exame. Tentamos novamente a redesignação da sessão de julgamento. Pedido novamente indeferido.
Há, ainda, outra questão: o despacho (desse mesmo juiz) que negou a presença física da ré na sessão do júri foi fundamentado na gravidade da pandemia e na necessidade de distanciamento social. Vai entender. Ao mesmo tempo em que indeferia o pedido de redesignação por suspeita de COVID-19, formulado pelas advogadas (com orientação médica!), indeferia o pedido da defesa para que a sessão do júri tivesse a presença física da acusada, alegando necessidade de distanciamento.
Esse é o panorama da nossa advocacia durante a pandemia. Dois pesos, duas medidas e um único fundamento judicial.
É triste saber que o caso aqui relatado não é isolado. Inúmeras são as notícias de advogadas e advogados que trabalham doentes de COVID-19, ou com filhos, assistentes, maridos, estagiários doentes. Não há o menor espaço, ainda, para atenção às mulheres advogadas, sobrecarregadas com as imposições do judiciário e a histórica dupla, tripla, quádrupla jornada.
O padrão da sobrecarga da advogada mulher é contínuo e facilmente demonstrável. A necessidade de ser mais competente, mais trabalhadora e mais diligente é condição para uma rentabilidade mediana. É praticamente insustentável.
A mulher advogada tem as mesmas responsabilidades e competência do homem advogado. Contudo, a mulher precisa superar o cansaço da dupla ou tripla jornada imposta pelas exigências domésticas que recaem sobre ela por questões puramente culturais. “Trabalho, e trabalho duro; mas não se esqueça de cuidar do lar!”, dizem, pensam e exigem.
Na pandemia, esse quadro se agravou. Os filhos sem aulas dependem (na maioria das vezes) da ajuda da mãe. A casa está mais bagunçada e com mais gente. O trabalho é remoto e todos já tiveram tempo de perceber que essa modalidade só faz aumentar a carga laboral. Não esqueçamos, também, das imposições estéticas: maquiagem e salto alto. E nada de energia negativa!
Além disso (porque, claro, não é só isso), a mulher advogada tem que competir com os homens no mercado de trabalho. Devem ser duplamente mais competentes para conseguir seu “lugar ao sol”.
A luta feminina por igualdade e emancipação remonta há séculos, e sabemos que ainda não estamos nem próximas dessas conquistas. Quem alega que as mulheres já conseguiram a igualdade acreditou num mito vendido por aí.
A pandemia tornou um caos a vida da mulher advogada, que já era muito complicada. Cada Estado, cada Tribunal agiu à sua própria forma, exigindo que os profissionais se adaptassem nos trinta. Nenhum Tribunal deu importância à situação especial da mulher advogada, que, via de regra, também é mãe, esposa, filha, tia. Um exemplo: o estado de Santa Catarina não proibiu visitas presenciais de advogadas ou advogados às unidades prisionais, apenas limitou-as. Já o estado do Paraná proibiu os advogados e advogadas de frequentarem presencialmente as unidades prisionais, impondo o atendimento por videoconferência.
Do ponto de vista legal, em específico do Estatuto da Advocacia, as advogadas e os advogados têm direito de “exercer, com liberdade, a profissão em todo território nacional” e “comunicar-se com seus clientes pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”.
No Paraná, a advogada precisa aguardar até sessenta dias para a videoconferência com o cliente, com tempo de consulta limitado a vinte minutos de conversa. Em Santa Catarina, no início da crise sanitária, o atendimento era limitado a um cliente por advogada(o). Posteriormente, elevaram esse limite para três clientes por profissional. Hoje, atendem de forma normal.
Toda a remodelagem da atividade da advogada na pandemia trouxe inúmeras consequências. O home office pressionou a adaptações constrangedoras; sustentar oralmente ao som de filhos chorando não pega bem, especialmente quando os julgadores são homens; prejudica a própria atividade, pois não há foco na sustentação oral que sobreviva à atenção de uma mãe com um bebê chorando.
Mas quem se importa? Cuidem dos filhos ou paguem alguém para isso, sob pena de tumultuar as sessões.
A situação das mulheres profissionais já é difícil normalmente, e não importa o problema, a crise pandêmica ou a guerra de mundos: as mulheres serão sempre as primeiras a sofrer seus reveses. Nossa situação é a que mais piora, e a que piora primeiro.
Disse Judith Butler que “o mundo compartilhado não é igualmente partilhado”. Às mulheres sempre coube menos. Apontamos, aqui, algumas desigualdades no exercício da advocacia durante a pandemia, quando as mulheres precisaram exercer a profissão em casa, em companhia de filhos sem escola, de maridos desempregados, sujeitas à integralidade das responsabilidades e aos próprios riscos da violência doméstica, que também atinge as advogadas. Mas esse último tópico é um papo para outra hora.
*Advogada, feminista, Especialista em Direito e Processo Penal, militante na área penal com ênfase no Tribunal do Júri. Membra da Comissão de Direitos Humanos da OAB/PR. Membra do Grupo de Pesquisa em Criminologia da UFPR.
PUBLICAÇÕES DA REVISTA VALENTE|
Esse texto foi originalmente e de forma exclusiva, escrito para a 6ª edição da Revista Valente. Para ler o artigo na revista ou ouvir o áudio texto, CLIQUE AQUI.
Ótima explicação, Dra! A sra. tem telefone de contato profissional? Queria tratar sobre um caso que temos aqui no escritório, creio que a sra. terá a expertise necessária.